- Cultura
- 29 de dezembro de 2023
André Valdez | Quem sabe, talvez, ela jamais tenha sido uma garotinha: 22 anos sem Cássia Eller
Há exatos 22 anos, o Brasil perdia Cássia Eller. A cantora morreu aos 39 anos de idade, após uma parada cardiorrespiratória. Em 29 de dezembro de 2021, em sua estreia como colunista do Giro de Gravataí, o jornalista e crítico musical André Valdez relembrou um pouco da história da artista e do espetáculo produzido em sua homenagem. Nesta sexta-feira, resgatamos este conteúdo sobre a cantora, que ainda hoje mantém uma legião de fãs.
Eu queria ser Cássia Eller
Sim, eu ainda busco plausíveis explicações para o que ocorreu naquela ventosa noite de sábado de um longínquo outubro. Em que pese o fato de ser canceriano, há quem diga que somos o suprassumo dos emotivos e sensíveis. Enfim, nunca compreendi horóscopos. Mas lá estava eu, no Theatro São Pedro lotado, para assistir “Cássia Eller – O Musical”.
Quando soaram os primeiros acordes, já fiquei com os olhos marejados – “Como assim!?”, indaguei. Ingressa no palco Tacy Campos, atriz que deu vida à cantora carioca. Ela não interpreta, ela incorpora. Ela não atua, ela reencarna a tímida filha de Dona Nanci. Ela rouba a cena, quando consegue fazer minuciosamente os trejeitos da cantora e deixa a todos boquiabertos; quando solta sua voz, o que faz com que todos pensem que estão diante da própria Cássia.
Talvez isso explique minimamente o meu descontrole no início do primeiro ato até o término da apresentação com alguns destaques e pontos altos da peça. Desde a sua primeira paixão, ainda na adolescência, por Moema, pela difícil confissão da sua sexualidade aos seus pais. Do seu encantamento por Marilu. Por fim, o encontro com seu grande amor, Maria Eugênia.
Eller, assim como foi dada aos excessos, também cortejou a promiscuidade por um período, muito embora sofresse com sua tacanha timidez. A inesperada gravidez, fruto de uma fugaz relação com o baixista Tavinho Fialho. A chegada de uma nova vida, fazendo com que repensasse a vida com Maria Eugênia, demonstrando uma parceria e cumplicidade ímpar entre elas.
É neste momento que ocorre um dos pontos altos da peça. Na hora em que cantam juntas o dueto de “1º Julho”, canção escrita pelo legionário Renato Russo para a cantora, que esperava seu primeiro e único rebento. Sendo esse um dos momentos mais emocionantes. Ok, ok, sou réu confesso. Já estava em lágrimas na execução de “Por Enquanto”, também numa interpretação fazendo com que a atriz fosse mais Cássia Eller que a própria Cássia Eller.
Teve também partes cômicas: quando ela canta “Juventude Transviada”, de Luiz Melodia, e é visivelmente assediada por uma voluptuosa Marilu, que não mede esforços para seduzir a tímida artista. “Palavras ao Vento”, de Marisa Monte, na qual ela fica dividida entre duas paixões. Seu encontro praticamente cósmico e transcendental com o cantor e compositor Nando Reis. Nesse encontro, eles protagonizam ainda as cenas mais emocionantes do espetáculo, começando com “Luz dos Olhos”.
Mas é em “Relicário” e em todas as canções do ruivo que se ouvem os primeiros narizes fungando, quebrando o silêncio na plateia. Choro preso na garganta em “All Star”, uma das canções mais aguardadas, música que Nando Reis confidenciou ter feito em homenagem à saudosa cantora e que arrebata o público de vez. A plateia já tomada por forte emoção canta e alguns choram durante a execução da música, que talvez seja a mais sincera prova de amor que se pode demonstrar a uma amiga.
Mas diante de tamanha emoção, ainda é possível dar boas risadas. Quando a cantora liga para agradecer o tropicalista Caetano Veloso pela canção “Gatas Extraordinárias”, que o compositor baiano fez para ela. A pouca desenvoltura da cantora com a afoita imprensa também rende alguns momentos hilários, como a inesperada Marília Gabriela, que se converteu em muitos risos e aplausos.
Houve cantos, sorrisos, lágrimas e aplausos. Teve também o momento de exorcizar seus pequenos demônios. Foi em “Smells like teen spirit”, da banda de Seattle, Nirvana, em que se pôde ver o lado mais transgressor e visceral da indomável artista.
Mas é chegada a hora de darmos adeus à intensa, explosiva e efêmera vida da artista carioca. A voz grave e sussurrada de Cássia Eller, ou melhor, de Tacy Campos, vai invadindo todo o teatro e, visivelmente extasiada, uma plateia perplexa ouve uma canção francesa já em tom despedida: “Je ne regrette rien”, que outrora já fora interpretada por Piaf. A cantora se despede do público, do seu filho e da vida, para se tornar um “Segundo Sol”.
A canção de Nando Reis vai lentamente sendo cantada por cada integrante do elenco até fecharem as cortinas e apagarem as luzes. Saí do teatro ainda estarrecido diante do que acabara de assistir, mas com uma única certeza, e que talvez explique meu choro compulsivo: “Eu queria ser Cássia Eller!”
Afinal, ela foi fera, foi bicho, foi anjo e foi mulher. Foi sua mãe e sua filha, sua irmã e uma menina. Saio da peça com a certeza de que aprendi um pouco mais com seu pequeno grande coração. Eu não sou poeta, mas já aprendi a amá-la.
Fotos: Reprodução