André Valdez | A menina que não dorme para ter o privilégio de ver seus sonhos realizados acordada

André Valdez | A menina que não dorme para ter o privilégio de ver seus sonhos realizados acordada
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“A menina que não dorme para ter o privilégio de ver seus sonhos realizados acordada”. Creio que essa deva ser a rotina de Izabel Cristina, que muito tem contribuído para a cultura de Gravataí e a quem há muito tempo eu já deveria ter prestado a merecida homenagem. Mea culpa, Mademoiselle. Afinal, a vida é um cabaré!

O convite foi feito por ela, que dirige a peça, que me intimou coercitivamente, é claro, a prestigiar uma de tantas de suas produções, já que reitero: ela não dorme. E lá estava eu, no dia de 21 de dezembro, aguardando para ingressar no antigo prédio da Prefeitura para a segunda noite de apresentações da peçaMademoiselle – O lugar onde tudo pode ser dito, ouvido e sentido” – o espetáculo comemora uma década de existência e teve sua estreia em Veranópolis, cidade natal de Izabel, que pelos serviços prestados à cultura já deveria ser alçada à condição de Cidadã Gravataiense. Fica a dica!

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Foto: Ton Muller

Mas, antes da apresentação, preciso falar de uma inquieta e criativa notívaga, a irrequieta Izabel Cristina, que faz da sua insônia, trabalho árduo e espalha ao mundo sua arte ao ponto de me questionar: “afinal, pra que dormir mesmo?” Izabel é diretora e professora de teatro, produtora, dramaturga, pesquisadora e coordenadora de Artes Cênicas na Prefeitura de Gravataí, licenciada em Teatro pela UFRGS, pós-graduada em Acessibilidade Cultural pela UFRJ e atualmente mestranda no programa de pós-graduação em Artes Cênicas da UFRGS.

Diretora da Cia Teatral Tem Gente no Palco, de Veranópolis, e do GET, ela também compõe a diretoria do colegiado Setorial de Teatro do RS, do SATED-RS, e do coletivo de festivais de teatro Interior em Cena. Atua como crítica teatral e é curadora e avaliadora em festivais, além de se dedicar à gestão de políticas públicas culturais no RS.

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Foto: Ton Muller

Percebam: se hoje eu começar a falar de Izabel, hoje eu não vou terminar…

E mesmo trabalhando em todas as referidas atribuições – escrevendo, dirigindo, atuando, estudando ou mesmo dando aula –, não é raro encontrá-la pelas ruas da cidade ou em algum evento cultural. Ainda assim, Izabel é sempre vista com seu acolhedor sorriso e simpatia travestida num fraterno abraço.  Duas coisas me intrigam em minha amiga Izabel: afinal, como ela faz pra fazer tudo o que faz, tendo o dia somente 24 horas? E o quão notório é seu engajamento e seu olhar cuidadoso e inclusivo quando o assunto é arte. Talvez, isso explique o segredo da sua grande produção artística.

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Mesmo eu, sendo mundialmente conhecido na cidade pelos meus pontuais atrasos, desta vez não correspondi às expectativas dos meus detratores e cheguei antes mesmo das portas serem abertas para o espetáculo Mademoiselle. No ingresso à antiga Prefeitura, já se antevia que os tempos eram outros e aquele ambiente que outrora fora palco da burocracia e da parte administrativa política do município, tinha virado cenário de malandros e vedetes que educadamente nos recepcionaram antes de destilarem seus dramas, dilemas e dissabores na nova Casa da Cultura gravataiense.

O espetáculo mostra não só o lado obscuro da malandragem, como também retrata um saudoso período da França da década 20 ou de um distante Brasil da década de 40, dos malandros que andavam assim de viés entre deusas e bofetões, como Chico Buarque denunciava a violência sofrida pelas mulheres na boêmia carioca, na música “A volta do malandro”. Aliás, o compositor é certamente uma das maiores referências da peça, que ainda inclui as composições “Folhetim”, “Partido Alto” e “Terezinha”, na qual algumas atrizes, diga-se de passagem, protagonizam um dos atos mais emocionantes do espetáculo.

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A grande virtude de “Mademoiselle” é que a peça não conta com um protagonista específico, fazendo assim, do seu grande trunfo a atuação de todo elenco e o próprio cabaré.  “A grande protagonista é o próprio cabaré, que junto a uma dramaturgia não linear e espaços não convencionais, transita por simbologias do sensível e visceral, convidando o espectador a uma vivência teatral imersiva”, explica Izabel Cristina, que além de dirigir, esbanja seu talento na atuação.

O público aplaudiu de pé o espetáculo, que foi resultado de reflexões, estudos e vivências do grupo. O trabalho artístico está em constante movimento e se reinventa a partir das percepções de mundo de quem compõe o elenco, das histórias particulares e narrativas sociais eminentes.  A primeira versão surgiu em 2013. “A peça é baseada em histórias reais que atravessam nossos corpos no mundo, como preconceitos, identidades, amores, aprisionamentos sociais e emocionais”, relata a multifacetada diretora e atriz. Na atual encenação, “Mademoiselle” denuncia a homofobia, transfobia, a violência doméstica, o abuso infantil, relações tóxicas e o submundo do crime que permeava a boemia carioca dos anos 40, temas sempre pertinentes, sobretudo no Brasil, país que mais mata pessoas trans no mundo, além de ser um dos mais homofóbicos.

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Foto: Cleonilda Silva

Na plateia, o prefeito Luiz Zafalon, que prestigiou o evento, fez um discurso incisivo condenando os ataques ofensivos proferidos por internautas nas das redes sociais do município em post sobre o espetáculo. Engana-se quem acha que a não compreensão das artes é motivo para vociferar brados irados de quem faz do seu falso moralismo, seu refúgio mais secreto para esconder os mais torpes e obscuros preconceitos. Talvez, seja apenas os resquícios e reflexos do obscurantismo que a pouco tempo vivenciamos.

Mas, a arte segue cumprindo seu papel e é dela as ferramentas da catarse e da inclusão. A arte tem, entre tantos ofícios, o dever de ser denunciante, questionadora, contestadora, provocadora, sarcástica se preciso, e melancólica quando necessária. A seriedade e picardia devem andar lado a lado para que, muitas vezes, juntas possam fazer do humor e do deboche as ferramentas mais eficazes e lancinantes para se abordar temas nevrálgicos e polêmicos.

Definitivamente, a arte é o que de melhor um ser humano pode nos oferecer. A arte é a proeza irredutível de querer nos tornar imortais. Sendo assim, encerro o ano com uma mea culpa em grande estilo, falando de alguém tão polivalente e ao mesmo tempo comprometida com a cultura. Por fim, Izabel Cristina é mesmo “insuportável” quando o assunto é talento e carisma.

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Foto: Divulgação

Foto de capa: Ton Muller

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