- Geral
- 14 de julho de 2020
Padre Fabiano | Negar a história ou encará-la?
Vou tratar de um assunto que foi notícias semanas atrás. Alguns podem se perguntar porque escrever sobre um tema que não está mais na pauta dos noticiários, porque abordar notícia atrasada. Primeira explicação: não sou jornalista, não estou preocupado com furo de reportagem, mas sim em refletir temas contemporâneos a partir do meu ponto de vista, cristão, católico, padre, historiador. Segundo, porque, muitas vezes, prefiro pensar bem, refletir, para depois emitir minha opinião.
Os protestos antirracismo desencadeados pelo assassinato de George Floyd no dia 25 de maio de 2020 em Minneapolis, vítima de uma ação truculenta da polícia, tiveram algumas ações violentas, algumas em resposta a ações policiais que tentaram impedir tais protestos, outras como fruto do calor do momento.
A crítica ao racismo, uma triste realidade que, em pleno século XXI ainda existe na nossa sociedade, de forma nem tão velada, feita pelos grupos que foram às ruas, questionaram de forma contundente a presença de monumentos erguidos em homenagem a personalidades que, no seu tempo, foram promotores do tráfico de escravos.
No dia 07 de junho, manifestantes antirracistas da cidade de Bristol derrubaram a estátua de Edward Colston, um alto funcionário da Royal African Company no final do século XVII, que enviou centenas de milhares de pessoas da África Ocidental à escravidão na América do Norte e Caribe. O questionamento é: como é possível que se tenha uma estátua homenageando alguém que enriqueceu aprisionando e transportando seres humanos, vendendo-os como mercadoria para trabalho escravo? E a estátua vai ao chão.
Nos EUA, uma estátua de Cristóvão Colombo foi decapitada, incendiada e jogada em lago na Virgínia; na Bélgica, se fala na derrubada da estátua do Rei Leopoldo. E o Brasil não ficou de fora de tais manifestações: a estátua de Borba Gato, um famoso bandeirante, situada em Santo Amaro, São Paulo, está sob a mira de manifestantes que querem sua derrubada, e inclusive um projeto de lei, de autoria da deputada estadual Erica Malunguinho (PSOL – SP) propõe a retirada de praças públicas de monumentos que homenageiem pessoas ligadas ao escravismo.
O tema que aqui estamos abordando é a construção da memória. O que deve ser integrado na memória coletiva de uma sociedade? E o que deve ser apagado? E algo deve ser apagado, ou ressignificado?
A escravidão foi, sem sombra de dúvida, uma das piores manchas da história brasileira, talvez a pior, agravada pela abolição tardia – foi dos últimos países a abolir o sistema de trabalho escravo, feito sem nenhum tipo de política inclusiva para os libertos. Sem cair em anacronismos e justificativas, é inaceitável a ideia da coisificação da pessoa humana, de sua transformação em mercadoria, de sua escravização. É triste saber que em nosso país ainda existem pessoas que trabalham sob o regime da escravidão ou semi-escravidão. Ainda assim, não penso que negar a história seja a solução para o problema.
Destruir um monumento é negar a história; mais do que isso, é querer apagar a memória. Apagar a memória não resolve o problema, nem mudará a história. Borba Gato foi bandeirante. Ponto. Destruir sua imagem não vai fazer com que ele deixe de ser bandeirante. Edward Colston vendeu escravos, e não deixará de sê-lo por ter sua imagem destruída.
Mas nós não podemos homenagear tais figuras, pois isso seria endossar o mal que fizeram. O monumento foi colocado num contexto histórico. Destruir o monumento é uma tentativa de apagar a memória, como faziam na antiguidade os grandes impérios quando conquistavam outros povos: destruíam seus monumentos como demonstração de força e para apagar a cultura dos conquistados.
Assim fez Hitler quando invadiu a Polônia e forçou a germanização dos eslavos, assim fizeram os bolcheviques quando, ao tomar o poder na Rússia sob a liderança de Lênin, destruiu monumentos cristãos, assim fizeram os líderes da Revolução Francesa no século XVIII. Penso que o caminho não é a destruição nem a retirada, e sim, olharmos de frente nossa história, ressignificarmos ela.
Se eu fosse professor de História em São Paulo, eu levaria os alunos para a frente da estátua de Borba Gato, explicaria a história e, quando um aluno perguntasse: “professor, por que essa estátua está aqui”, eu responderia: “para que não esqueçamos essa parte da nossa história, e não cometamos os mesmos erros no futuro.” O projeto de lei da deputada paulista fala em levar os monumentos retirados para algum museu. É uma solução melhor que a simples retirada ou destruição. Não podemos ser coniventes com nenhum tipo de vandalismo.
Agora, se o caminho for tirar de circulação todos os monumentos e imagens de personalidades que, de alguma forma, atentaram contra a dignidade da pessoa humana, isso não pode ser feito de forma seletiva. Penso, por exemplo, nas inúmeras camisetas e bandeiras de Che Guevara que são vendidas; um dos líderes da revolução cubana, era comandante do pelotão de fuzilamento em Cuba, e foi responsável por muitas execuções. Anos atrás eu vi um posto de saúde com o nome “Ernesto Guevara”. Pode um posto de saúde ter o nome de um assassino?