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- 20 de novembro de 2020
Padre Fabiano | O assassinato de João Alberto expõe uma chaga aberta em nossa sociedade
Dois homens brancos espancam brutalmente um homem negro até à morte deste. Poderia ser a descrição contida num livro de história do Brasil, num capítulo sobre a escravidão negra, descrevendo o que os donos de escravos faziam com suas “propriedades.” Infelizmente estou descrevendo uma cena do século XXI, do ano 2020, do dia de ontem, véspera da do Dia da Consciência Negra. Em Porto Alegre, nossa capital, na loja da Rede Carrefour.
João Alberto Silveira Freitas, 40 anos, negro, foi com a esposa ao Carrefour da Zona Norte fazer compras. Após um desentendimento com uma funcionária, foi seguido por dois seguranças até o estacionamento, onde foi espancado, imobilizado, asfixiado, morto. Covardemente morto. Os assassinos: um jovem de 24 anos e um homem de 30 anos. Um segurança e um policial miliar à paisana.
As circunstâncias do desentendimento de João com a funcionária ainda não estão totalmente esclarecidas; uma funcionária da rede, que filmava tudo, alegou que ele, João, batera em uma funcionária e nos próprios seguranças. Contudo, as imagens são claras: os dois seguranças não imobilizaram-no, mas o espancaram. Em certo momento, um deles desfere inúmeros socos contra a cabeça de João. Ele pede ajuda. Outros seguranças chegam e também se colocam a “imobilizá-lo.” A funcionária que estava filmando tentou impedir que os clientes filmassem a ação. Por que ter medo da gravação se não estavam fazendo nada demais?
João foi assassinado. Foi isso que aconteceu. Ele estava desarmado e foi espancado até a morte. Um homem negro assassinado por dois homens brancos. Quantos casos de homens brancos espancados até a morte ouvimos falar. Há intelectuais que falam no racismo estrutural, há outros que negam o racismo estrutural. Não sei de racismo estrutural, sei de um homem que foi assassinado a socos. Sei das cenas de barbárie. E depois a Idade Média é que era a idade das trevas.
A abolição da escravidão, em 13 de maio de 1888, não resolveu o problema da desumanização dos africanos trazidos para o Brasil como escravos. A escravidão é uma instituição das mais antigas na história da humanidade, e trata da posse de um ser humano por outro ser humano. Um ser humano perde sua condição de pessoa, e passa a ser “coisa”, propriedade de alguém, que adquire sobre ele direito de vida e morte.
Era comum nas guerras entre povos que os vencidos tornavam-se escravos dos vencedores. Quando um indivíduo devia dinheiro a outro, e não tinha como pagar, entregava-se como escravo ou dava sua esposa e filhos como escravos para pagamento da dívida. O povo de Israel foi escravo dos egípcios e babilônios. O aprisionamento de africanos para vende-los como escravos na América teve início por volta do século XV.
A economia do Brasil colonial e do Brasil imperial tinha como sustentáculo a mão-de-obra escrava. Fomos o último país da América a acabar com a escravidão, e não houve nenhuma política de inclusão dos negros na sociedade brasileira. Eles foram libertos e… pronto. Nada mais. Por que? Porque não eram vistos como seres humanos, mas como um problema a ser resolvido. Acabou-se com a instituição escravidão, mas não se olhou para as pessoas negras, que precisavam ser trazidas à sua condição de pessoas e incluídas na sociedade brasileira.
O assassinato de João Alberto na véspera do Dia da Consciência Negra expõe uma chaga aberta em nossa sociedade o século XV: a visão que temos acerca dos negros. Há os que afirmam que no Brasil não existe racismo, que é um problema resolvido. Eu me pergunto: será? O brutal assassinato de João não é uma resposta? Segundo o IBGE, entre 2012 e 2017, foram registradas 255 mil mortes de negros por assassinato; em proporção, negros têm 2,7 mais chances de ser vítima do que brancos.
Por que os negros tem 2,7 vezes mais chances de serem vítimas, e porque morrem tantos negros no Brasil comparados com brancos? São números condizentes com a tese de que não existe racismo no Brasil? São perguntas que precisamos refletir para responder, e o dia de hoje, Dia da Consciência Negra, é o dia propício para essas reflexões. Em pleno século XXI, ainda assistimos cenas como as de ontem, ou vemos uma vereadora negra eleita no último domingo sofrendo injúria racial nas redes sociais. Situações que comprovam que o problema do racismo no Brasil está longe de ser resolvido.
Ainda segundo o IBGE, em 2018, 46,5 % da população brasileira declarava-se parda, enquanto 43,1 % declarava-se branca. Levando em conta que muitos desses pardos talvez sejam negros que tenham vergonha de se declarar negro, podemos ver que nosso país não tem maioria branca. A mesma proporção não temos nas câmaras municipais, nos paços municipais, estaduais ou mesmo na esfera federal. Quantos vereadores negros? Quantos prefeitos negros? Quantos governadores? Quantos presidentes negros já tivemos em nossa história? Podemos realmente dizer que não somos um país racista. Penso que há muito que refletir, muito que escrever, muito que lutar por um país mais justo.
No século XIX, o poeta Castro Alves, abolicionista, tentou traduzir em poema o horror do tráfico escravo, tentou transformar em arte realista a terrível viagem dos cativos nos navios negreiros. Obra prima da literatura brasileira, o poema O Navio Negreiro é ainda muito atual, e, no dia que despertamos com a notícia do assassinato de um homem negro por dois homens brancos, a poesia de Castro Alves serve para que nunca esqueçamos o que a maldade humana é capaz de fazer.
Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus!
Se é loucura… se é verdade
Tanto horror perante os céus?!
Ó mar, por que não apagas
Co’a esponja de tuas vagas
De teu manto este borrão?…
Astros! noites! tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão!
Quem são estes desgraçados
Que não encontram em vós
Mais que o rir calmo da turba
Que excita a fúria do algoz?
Quem são? Se a estrela se cala,
Se a vaga à pressa resvala
Como um cúmplice fugaz,
Perante a noite confusa…
Dize-o tu, severa Musa,
Musa libérrima, audaz!…
São os filhos do deserto,
Onde a terra esposa a luz.
Onde vive em campo aberto
A tribo dos homens nus…
São os guerreiros ousados
Que com os tigres mosqueados
Combatem na solidão.
Ontem simples, fortes, bravos.
Hoje míseros escravos,
Sem luz, sem ar, sem razão.