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- 25 de março de 2018
Jackson Reis | A menina Naiara e os nossos monstros de cada dia
Artigo de Jackson Reis
Quando ouvi pela primeira vez o caso da menina Naiara de apenas 7 anos, desaparecida em Caxias do Sul, lembrei do meu tempo de criança em que tudo era motivo de distração, brincadeiras. O novo e o colorido que atrai os olhos, que encanta. Medo de quê? Do bicho-papão que povoava somente o nosso imaginário. O perigo real é um bicho feroz e irracional com o qual passamos a conviver quando o encanto de criança se perde. E quando perdemos?
Quando deixamos de catar pedras na rua e perceber as formas das nuvens? Deveria ser um processo natural, ao atingirmos uma determinada idade que não sabemos ao certo. Porém, esse limiar pode ser rompido de maneira súbita, trágica, dolorida. Por que esse primeiro contato com a crueldade do mundo pode acontecer cedo demais?
E quando soube que haviam localizado o corpo, mais de uma semana depois – infelizmente uma notícia já esperada – como doeu! Jamais nos acostumamos a conviver com a frieza da humanidade.
Sem pai e com a mãe morando longe, a maior parte da pequena vida de Naiara se passou longe do conforto e segurança de famílias socialmente estruturadas e economicamente estáveis. Lamentável que a dureza da vida possa surgir já tão cedo. Mas havia ali um sorriso cativante que parecia eliminar todas as dores do universo. Alegre e espontânea, a menininha só queria brincar, estudar, ser amada e ser feliz. Por que não?
Seguia um caminho longo, muito longo, quando de repente o mal se colocou ao seu redor. Naiara poderia crescer, vencer todas as dificuldades e se tornar uma adulta com sonhos, planos e muito a contribuir para a sociedade. Mas o bicho-papão atravessou a sua jornada e roubou o seu mundo encantado, desmontou o seu castelo de poesias.
Quem matou Naiara foi o monstro que reside em cada um de nós. Temos raiva mortal de estupradores, mas relevamos aquele amigo que procura “novinhas” na internet. Naturalizamos o uso da superioridade – quase sempre masculina – sobre corpos frágeis e delicados, num sistema brutal de poder em que a pedofilia é um dos graves sintomas. Muitas vezes não ouvimos devidamente as queixas e as mudanças de comportamento repentinas de nossas crianças. Falamos mal dos tais “direitos humanos” que, segundo o senso comum e os boatos abundantes por aí, só “defendem bandidos”, e não atentamos ao fato de que a proteção integral da infância é um dos pilares básicos dessa luta.
Reclamamos do governo nas ruas e nas redes sociais, mas não nos interessamos em agir de forma concreta contra a ineficiência do poder público que não endurece as leis, favorece a impunidade e não cumpre o papel básico de assegurar qualidade de vida à criança.
Escola perto de casa e transporte seguro, por exemplo, são direitos tão básicos que chega a ser ridículo nós termos que lutar tanto por eles. Mas sim, havemos de lutar. Contra o descaso, a impunidade, os monstros que estão à espreita por aí, e aqueles que moram em nós mesmos e não conseguimos enxergar.
Do luto à luta! Chorar por tantas Naiaras é uma dor que cansa e machuca a alma. Estamos fartos. Dorme, anjinho, longe da maldade do mundo, enquanto nós, aqui nesse caos, empunhamos a bandeira da justiça e do livre direito de existir, estudar, brincar e ser feliz.