- Especial
- 29 de dezembro de 2021
André Valdez | Quem sabe, talvez, ela jamais tenha sido uma garotinha
Estreiando a sua coluna musical no Giro de Gravataí justamenteno dia em que a morte de Cássia Eller completa 20 anos, o jornalista André Valdez relembra uma das mais belas homenagens à cantora, o espetáculo Cássia Eller, O Musical.
Eu queria ser Cássia Eller
Sim, eu ainda busco plausíveis explicações para o que ocorreu naquela ventosa noite de sábado de um longínquo outubro. Em que pese o fato de ser canceriano, há quem diga que somos o suprassumo dos emotivos e sensíveis. Enfim, nunca compreendi horóscopos.
Mas, lá estava eu, no Teatro São Pedro lotado para assistir: “Cássia Eller – O musical”.
Quando soaram os primeiros acordes, já fiquei com os olhos marejados, (como assim?! Me indaguei). Ingressa no palco Tacy Campos, atriz que deu vida na peça à cantora carioca.
Ela não interpreta, ela incorpora.
Ela não atua, ela reencarna a tímida filha de Dona Nanci.
Ela rouba a cena, quando consegue fazer minuciosamente os trejeitos da cantora e deixa a todos boquiabertos, quando solta sua voz, o que faz com que todos pensem que estão diante da própria Cássia.
Talvez isso explique minimamente o meu descontrole no início do primeiro ato até o término da apresentação com alguns destaques e pontos altos da peça. Desde a sua primeira paixão, ainda na adolescência, por Moema, pela difícil confissão da sua sexualidade aos seus pais. Do seu encantamento por Marilu. Por fim, o encontro com seu grande amor, Maria Eugênia.
Eller, assim como foi dada aos excessos, também cortejou a promiscuidade por um período, muito embora sofresse com sua tacanha timidez.
A inesperada gravidez, fruto de uma fugaz relação com o baixista Tavinho Fialho.
A chegada de uma nova vida, fazendo com que o casal repensasse a vida com Maria Eugênia demonstrando uma parceria e cumplicidade ímpar entre elas.
É neste momento que ocorre um dos pontos altos da peça. Na hora em que cantam juntas o dueto de “1°Julho”, canção escrita pelo legionário Renato Russo para a cantora, que esperava seu primeiro e único rebento. Sendo esse um dos momentos mais emocionantes. Ok, ok, sou réu confesso. Já estava em lágrimas na execução de “Por Enquanto”, também numa interpretação fazendo com que a atriz fosse mais Cássia Eller que a própria Cássia Eller.
Teve também partes cômicas: quando ela canta “Juventude Transviada”, de Luiz Melodia, e é visivelmente assediada por uma voluptuosa Marilu, que não mede esforços para seduzir a tímida artista. “Palavras ao Vento”, de Marisa Monte, onde ela fica divida entre duas paixões. Seu encontro praticamente cósmico e transcendental com o cantor e compositor Nando Reis. Nesse encontro, eles protagonizam ainda as cenas mais emocionantes da peça, começando com “Luz dos Olhos”.
Mas é em “Relicário” e em todas as canções do ruivo que se ouvem os primeiros narizes fungando, quebrando o silêncio na plateia. Choro preso na garganta em “All Star”, uma das canções mais aguardadas do espetáculo, música que Nando Reis confidenciou ter feito em homenagem à saudosa cantora e que arrebata o público de vez.
A plateia já tomada por forte emoção canta e alguns choram durante a execução da música, que talvez seja a mais sincera prova de amor que se pode demonstrar a uma amiga.
Mas diante de tamanha emoção ainda é possível dar boas risadas. Quando a cantora liga para agradecer o tropicalista Caetano Veloso pela canção “Gatas Extraordinárias” que o compositor baiano fez para ela. A pouca desenvoltura da cantora com a afoita imprensa também rende alguns momentos hilários, como a inesperada Marília Gabriela, que se converteu em muitos risos e aplausos.
Houve cantos, sorrisos, lágrimas e aplausos.
Teve também o momento de exorcizar seus pequenos demônios. Foi em “Smells Like Teen Spirit” da banda de Seattle, Nirvana, em que se pôde ver o lado mais transgressor e visceral da indomável artista.
Mas é chegada a hora de darmos adeus à intensa, explosiva e efêmera vida da artista carioca.
A voz grave e sussurrada de Cássia Eller, ou melhor, digo: Tacy Campos, vai invadindo todo o teatro São Pedro lotado e visivelmente extasiado, uma plateia perplexa que ouve uma canção francesa já em tom despedida. “Je ne regrette rien”, que outrora já fora interpretada por Piaf. A cantora se despede do público, do seu filho e da vida, para se tornar um segundo sol.
A canção de Nando Reis, vai lentamente sendo cantada por cada integrante do elenco até fechar as cortinas e o apagar das luzes.
Saí do teatro ainda estarrecido diante do que acabara de assistir, mas com uma única certeza que talvez explique meu choro compulsivo:
“Eu queria ser Cássia Eller!”
Afinal, ela foi fera, foi bicho, foi anjo e foi mulher. Foi sua mãe e sua filha, sua irmã e uma menina.
Saio da peça com a certeza de que aprendi um pouco mais com seu pequeno grande coração. Eu não sou poeta, mas já aprendi a amá-la.